O DIA EM QUE DEI UMA CARTEIRADA NA POLÍCIA

   Quem anda sabe como é comum que as sessões acabem naquela troca de ideias sobre os altos e baixos do movimento e, vez ou outra, pelo menos antigamente, quando o assunto ainda era novidade, um tema que sempre vinha à tona era sobre a real função da carteirinha de skatista profissional. Como essas ideias têm um tom descontraído, quase sempre apareciam afirmações sobre o tema do tipo “Só serve pra tomar geral dos homens” ou a sua negação direta “Não serve nem pra tomar geral dos homens”.

  E teve uma vez, há muitos anos, em que eu pude comprovar, na prática, a eficácia de nossa funcional, se é que podemos chamá-la assim, diante de uma averiguação policial. Aí vai:

  Era madrugada. Estávamos eu e mais dois amigos. Um, um proeminente skatista profissional, à época ainda amador. O outro, professor de História, parceiro de sessão desde os primeiros impulsos.

  Eu havia acabado de voltar a morar em Piracicaba, e como voltávamos da noite com algumas cervejas ainda por tomar, sugeri que terminássemos de tomá-las na praça da escola situada bem em frente à minha casa.

  Enquanto bebíamos e trocávamos ideias, sentados nos degraus de mármore sujos de vela da escola, eis que me passam os gambés. Desconfiado, o amigo professor nos alertou: “Quer valer quanto que vão voltar?”. Sem me preocupar, até porque não tínhamos razão para isso, tranquilizei-o com aquela conversa de “relaxa, não devemos nada” e tal, e seguimos ali, de boa. Mas não deu outra: menos de três minutos depois, os caras deram a volta no quarteirão e chegaram por trás de nós, por dentro da praça, sem chance de qualquer tipo de reação: “Vai, mão na cabeça, encosta na parede e não olha pra trás!”

“Tá tranquilo”, pensei, mesmo porque realmente estava: não fazíamos nada de errado, estávamos em frente de casa e não éramos nenhum tipo de desocupados nem nada. No meu caso, era um atleta profissional, e era capaz até mesmo de me identificar como tal, aliás, eu possuía uma carteirinha de atleta profissional emitida pela confederação que nos representa em todo o Brasil. Beleza.

  Após toda aquela “formalidade” característica da corporação que nos averiguava e devido à insistência do servidor em nos tratar como vadios e/ou como marginais, resolvi, então, adotar um tom um pouco mais à altura do tratamento que vínhamos recebendo, a fim de esclarecer de uma vez por todas que éramos pessoas decentes e que estávamos ali tranquilos.

  Questionado sobre minha profissão, disse ser skatista profissional, que ganhava determinado valor mensal (disse um valor mais alto do que realmente eu ganhava, o que me poupou alguns segundos do que estava para acontecer), mostrei minha carteirinha e, pra finalizar, ainda emendei, em alto e bom som, um belo de um “fora os bônus”. Na prática, foi mais ou menos assim, não necessariamente nessa ordem: “Eu sou skatista profissional, tá aqui minha carteirinha, ó! Ganho dois mil reais, isso fora os bônus!”. Visivelmente indignado e com sangue nos olhos, o policial me perguntou: “O quê?!”; e eu: “Fora os BÔNUS!”.

  Foi a deixa. Naquela hora vi que nada daquilo significava alguma coisa àquele policial, tanto que comecei a ser espancado ali mesmo, e assim segui por longos minutos, mas, a partir daquele momento, para mim, tudo aquilo deixou de ser pelo certo ou pelo errado e passou a ser pela causa. Passou a ser pelo skateboard, por tudo que eu lutava há anos e que aquele homem fardado insistia em contestar me agredindo física e verbalmente. A partir dali, disse a mim mesmo: “Morro mas não saio daqui”. E debochado, não sei se pelo torpor do álcool que corria em minhas veias, o que me ajudava a aguentar aquilo com certo ar de desdém, ou se pela revolta que toda aquela merda me causava, ainda tive a manha de deixar escapar um pequeno riso quando nosso querido amigo educador disse ter um 16 em seu nome, o que me garantiu apanhar por mais alguns minutos.

  Mas como disse: “Morro mas não saio daqui”. E não saí. O que, de certa forma, fez com que eu saísse vitorioso. Eu e todo o skateboard, a nossa arte, nosso direito de ir e vir. Nosso estilo de vida. Uma pena que no outro dia, já em São Paulo, no museu do Ipiranga, onde tinha combinado de me encontrar com um amigo chileno para andar, eu mal podia me mover, e assim segui por vários dias mais.

  Já quanto à carteirinha, bom, pude constatar, de maneira empírica, qual não é uma de suas funções, além de que, desde então, passei a posicioná-la corretamente em minha carteira: em local de difícil acesso, juntamente com minha simpatia de notas estrangeiras e sementes de romã. Escondida. Inacessível. Desencorajando-me, assim, de qualquer possível pesquisa de campo que eu possa vir a querer fazer num momento inoportuno.



Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

PEÇAS GRINGAS MAIS BARATAS: SALVAÇÃO OU ARAPUCA?

DEVANEIO

HOJE NÃO